Alberto Manguel

A MEMÓRIA DOS LUGARES IMAGINÁRIOS

2/3 (Segunda parte de uma série de três artigos)

Alberto Manguel © Fotografia: Ana Alvim 2019

Uma biblioteca encerra um conjunto infinito de possibilidades, na medida em que toda a realidade narrada nas páginas de um livro transcende o espaço físico desse livro. Quando o pensamento se expande através da leitura de um texto, opera-se uma espécie de dilatação dos limites.

Lendo a obra do ex-director da Biblioteca Nacional da Argentina, torna-se bem explícito que uma biblioteca é, simultaneamente, um lugar de memória por acumulação, onde conflui a fisicalidade dos livros, e um lugar de expansão,em virtude de possuir a capacidade de abarcar e transcender a própria realidade. Esta dilatação opera-se através do uso da imaginação e da criatividade que a leitura proporciona.  

A biblioteca, enquanto lugar de expansão, abre-se à imaginação. E Manguel justifica-o através de Sir Thomas Browne, quando, no século XVII, afirmou: “temos em nós as maravilhas que buscamos no mundo exterior. Está toda a África e seus prodígios em nós próprios; somos essa valente e bem-aventurada obra da natureza que sabiamente aprende a conhecer num só volume aquilo que outros buscam em tomos infinitos e fragmentados”. Manguel considera que, sem o saber, Thomas Browne acabou por definir uma biblioteca.

Leitura: felicidade ou inquietação

Em conversa no final do encontro na Biblioteca Municipal de Torres Novas, e interpelado sobre qual forma mais adequada para criar novos leitores, Manguel responde que é contra as listas de livros obrigatórios nas escolas: “a juventude tem uma forma de subversão que é a inteligência. E assim, a leitura tem que ser motivada, tem que ser fonte de felicidade ou de inquietação, por isso, não deve ser imposta.” 

Então, como ‘vender’ um produto tão difícil? Ler é um acto que exige esforço. “Existem algumas maneiras inteligentes e eficazes para motivar a leitura: uma delas é o ensino por imitação. O professor tem que ser visivelmente apaixonado pelos livros e pela leitura. Os leitores nunca foram burros. Se um leitor cativar outro leitor, temos dois leitores motivados, ficamos então com o dobro dos leitores”.

Outra estratégia é “o alargamento dos temas para a leitura, introduzindo novos assuntos como as questões de género.” Sustenta que “criar mais leitores pode também passar por criar programas de educação para a leitura para docentes, que os torne leitores apaixonados. Criar leitores apaixonados entre os docentesimplica também a leitura de livros sobre novos temas, que abram o debate sobre a identidade feminina, a fluidez de género ou a transexualidade.“

Para Manguel, seria demasiado pedir aos bibliotecários que educassem uma sociedade e que fossem os mártires do nosso tempo: “não podemos pedir que uma biblioteca funcione como um centro de criação de cidadãos éticos dentro de uma sociedade que não é ética”. Mas, enquanto criaturas inteligentes, se a nossa espécie sobreviver, será por mérito do trabalho dos bibliotecários: “devido ao esforço do pequeno bibliotecário da pequena biblioteca da pequena cidade, que continua acreditando que a leitura é importante e que a inteligência tem valor.”

Faz notar, ainda, que na sociedade suicida em que vivemos, a tarefa de criação de leitores é excepcionalmente complexa e difícil. O que fazer para convencer esta gente jovem de que algo que é lento e difícil é útil? Como se faz para se ‘vender’um produto que é lento e difícil? “Eu digo sempre que se um leitor converte outro leitor, imediatamente duplicamos o número de leitores. Mas é uma tarefa dificílima porque estamos numa sociedade suicida, numa sociedade que promove a venda de armas, o cigarro, promove os produtos com açúcar numa epidemia de diabetes, promove o carbono… Estamos à beira de acabar com os recursos da terra, então, isso são sociedades suicidas, não alimentam a criação de leitores. Mas eu confio na inteligência e na imaginação da gente jovem. E se conseguirmos dizer aos jovens que a melhor forma de rebelião está na sua inteligência, que a leitura é a forma mais efectiva para a subversão, quem sabe possamos conseguir algo”.

Assinala ainda que existe um paradoxo essencial na nossa espécie: “desde que temos consciência de nós próprios, desde o aparecimento do Neandertalou mesmo do Sapiens, nunca conseguimos imaginar uma sociedade medianamente justa e medianamente feliz. Nunca. Sócrates, quando na «República»passa em revista as formas de sociedade, acha quenão há nenhuma que lhe pareça perfeita para a felicidade humana. E porquê? É isso que irá procurar indagar através do seu próximo trabalho, a «História das Utopias»: compreender “porque nunca funcionam as utopias”.

Humanismo e universalidade

Podemos concluir que existem dois traços fundamentais no pensamento de Alberto Manguel. A profunda crença humanistano papel da leitura e da linguagem enquanto geradoras de felicidade e a afirmação do sentido de transcendênciada linguagem; ou seja, é a linguagem que confere um estatuto de transcendência da fisicalidade e de universalidade à Biblioteca. Além da existência física e material da mesma, da pedra e da madeira de que é feita num determinado lugar, uma biblioteca acolhe tesouros que recorrem “aos inícios da linguagem humana, apresentando a evidência do que ocorreu num passado distante e também neste mesmo momento, com a esperança de servir de eleição e exemplo aos utilizadores do futuro.

A ambição de qualquer biblioteca, mais do que possuir “fachadas imponentes e autoritárias”, é promover os sete pilares da sabedoria.“Mas os sete valores da sabedoria não são o fortuito, o fácil, o superficial, o breve, o cegamente violento, o trivial; são, sim, o inteligente, o meditado, o profundo, o difícil, o imaginativo.” 

Portanto, a linguagem possui um estatuto ético. E, além desse estatuto, podemos dizer que, para Alberto Manguel, as palavras assumem também uma importante dimensão ontológica,uma vez que não servem unicamente para comunicar ou registar. As palavras assumem um carácter materializado, uma marca existencial—uma vez proferidas, as palavras que nomeiam o mundo transformam-se nesse mesmo mundo, passando elas a ser o próprio mundo: “a coisa é assumida pela palavra que a nomeia, contaminando-a e enriquecendo-a através de toda a ancestralidade e conotações e preconceitos que a palavra arrasta consigo ao longo da sua vida.”

Alberta Manguel concorda com Jorge Luís Borges quando este declara que as palavras dão vida àquilo que elas designam e descrevem, chegando mesmo a afirmar que, “se tal como os gregos nos explicaram, o nome é o arquétipo da coisa, então, nas letras da palavra ‘rosa’, existe a rosa; e o Nilo inteiro na palavra ‘Nilo’”. Ou, se quisermos, o mundo revela-se napalavra e atravésda palavra.

Uma biblioteca encerra um conjunto infinito de possibilidades, na medida em que toda a realidade narrada nas páginas de um livro transcende o espaço físico desse livro. Quando o pensamento se expande através da leitura de um texto, opera-se uma espécie de dilatação dos limites. O espaço revelado num livro estende-se até aos “lugares imaginários”. E aí, nesses lugares de utopia, não existem fronteiras para a imaginação da humanidade.

Ana Alvim (Março 2019)